sábado, 17 de janeiro de 2009

Textos de Descartes

1. Dúvida
"[...] admiti anteriormente como absolutamente certas e manifestas muitas coisas que, entretanto, depreendi depois serem duvidosas. Que coisas foram estas? A Terra, o Céu, os Astros, e todas as coisas que recebi pelos sentidos. Mas o que compreendia eu delas, com clareza? As próprias ideias ou pensamentos de tais coisas, que se apresentavam ao meu espírito. E ainda agora não contesto que estas ideias estão de facto em mim. [...] Mas que mais? Quando considerava nos temas da Aritmética e da Geometria coisas absolutamente simples e fáceis, como dois mais três são cinco, e equivalentes, não as intuí pelo menos bastante claramente para afirmar que são verdadeiras? Posteriormente, só fiz o juízo de que se devia duvidar delas porque me vinha ao espírito que possivelmente um certo Deus podia ter-me dado uma tal natureza que eu também me enganasse sobre aquelas coisas que parecem mais manifestas. Mas sempre que esta opinião sobre o poder supremo de Deus, concebida anteriormente, me ocorre, não posso deixar de confessar que a ele lhe é fácil, se o quiser, conseguir que eu erre também naquilo que intuo do modo mais evidente pelos olhos do espírito."

2. Cogito
"[...] persuadi-me que não havia absolutamente nada no mundo, nenhum céu, nenhuma terra, nenhuns espíritos, nenhuns corpos. Não me persuadi também de que eu próprio não existia? Pelo contrário, eu existia com certeza se me persuadi de alguma coisa. Mas há um enganador, não sei qual, sumamente poderoso, sumamente astuto, que me engana sempre com a sua indústria. No entanto, não há dúvida de que também existo, se me engana; que me engane quanto possa, não conseguirá nunca que eu seja nada enquanto eu pensar que sou alguma coisa. De maneira que, depois de ter pesado e repesado muito bem tudo isto, deve por último concluir-se que esta proposição Eu sou, eu existo, sempre que proferida por mim ou concebida pelo meu espírito, é necessariamente verdadeira."

3. Deus
a) " ... é manifesto, pela luz natural, que deve haver pelo menos tanta realidade objectiva na causa ... como no efeito da mesma causa. Porque, pergunto, de onde pode o efeito tirar a sua realidade, a não ser da causa? E de que modo poderia ela conferir-lha se não a possuísse também? Daqui se segue que nem algo pode provir do nada, nem também aquilo que é mais perfeito, isto é, que contém em si mais realidade, daquilo que contém menos perfeição."

b) "Quanto ao que é claro e distinto nas ideias das coisas corpóreas, parece-me que alguma coisa poderia ser tirada da ideia de mim mesmo ... De maneira que só resta a ideia de Deus, na qual se deve considerar se há alguma coisa que não pudesse provir de mim próprio. Pelo nome de Deus compreendo uma certa substância infinita, independente, sumamente inteligente, omnipotente, e pela qual foram criados quer eu mesmo, quer tudo o resto que existe, se é que alguma coisa existe. O que, sem dúvida, é tão notável que quanto mais cuidadosamente atento nessa ideia tanto menos parece que eu possa tirar só de mim a sua origem. E, por conseguinte, do atrás dito deve concluir-se que Deus existe necessariamente. Porque, embora pela razão de eu ser uma substância esteja em mim uma certa ideia de substância, no entanto, como sou finito, não seria a ideia de uma substância infinita, a não ser que procedesse de outra substância que fosse realmente infinita."

c) "Agora parece que enxergo um certo caminho pelo qual se é conduzido desta contemplação do Deus verdadeiro ... ao conhecimento de todas as outras coisas. Em primeiro lugar, reconheço que é impossível que ele me engane alguma vez, porque em toda a falácia ou logro se descobre alguma imperfeição. E embora poder enganar pareça ser uma certa prova de subtileza de espírito ou de poder; querer enganar atesta, sem dúvida nenhuma, malícia ou fraqueza de espírito: o que, por isso, não pertence a Deus. A seguir, verifico que há em mim uma certa faculdade de julgar que, certamente, recebi de Deus, como todas as restantes coisas que há em mim; e, porque ele não me quer enganar, com certeza não ma deu tal que, quando rectamente a uso, possa errar alguma vez."

4. Ideias inatas
"E agora, depois de ter notado o que se deve evitar e o que se deve fazer para atingir a verdade, parece-me que nada é mais urgente do que emergir das dúvidas em que caí nos dias precedentes e ver se posso conhecer algo de certo sobre as coisas materiais. E, na verdade, antes de inquirir se tais coisas existem for a de mim, devo considerar as ideias delas, na medida em que estão no meu pensamento, e ver quais são as distintas e quais são as confusas. Assim, imagino distintamente a quantidade, que os filósofos chamam vulgarmente quantidade contínua, ou seja, a extensão desta quantidade ou, melhor, de uma coisa maior ou menor, segundo o comprimento e largura e a profundidade. Nela posso contar várias partes e atribuir-lhes toda a espécie de grandezas, figuras, situações e movimentos locais, e a estes movimentos quaisquer durações. E não conheço apenas perfeitamente e com evidência estas coisas, assim genericamente consideradas. Além disso, se presto atenção, concebo também inúmeras particularidades sobre as figuras, o número, o movimento, e coisas semelhantes, cuja verdade é tão clara e tão consentânea com a minha natureza que, logo que as começo a descobrir, parece-me que não aprendo qualquer coisa de novo, mas que, ao contrário, me recordo do que já anteriormente sabia: ou seja, que presto atenção, pela primeira vez, a coisas que há muito tempo já estavam dentro de mim, sem que eu antes tivesse dirigido para elas a minha atenção."

DESCARTES, Meditações sobre a Filosofia Primeira

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