quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

O alcance do cepticismo


"Passamos assim de algumas crenças tradicionais semi-inadvertidas, para outras racionalmente verificadas. Se a crença na própria razão, que alguns consideraram "uma velha enganadora", como Nietzsche afirmava a respeito da gramática? E a crença na verdade? Não poderiam ser também ilusões nada fiáveis e fontes de outras ilusões perigosas? Muitos filósofos se questionaram sobre estas perguntas: longe de serem todos eles decididos racionalistas, isto é, crentes na eficácia da razão, não faltam os que levantaram sérias dúvidas sobre ela e sobre a própria noção de verdade que pretende atingir. Alguns são cépticos, quer dizer, põem em questão ou negam rotundamente a capa cidade da razão para estabelecer verdades conclusivas. Outros, são relativistas, ou seja, acham que não existem verdades absolutas mas apenas relativas conforme a etnia, o sexo, a posição social ou os interesses de cada um e que por isso nenhuma forma universal da razão pode ser válida para todos. Há também os que não gostam da razão pelo seu avanço laborioso, cheio de erros e tentativas, para se declararem partidários de uma forma de conhecimento superior, muito mais intuitiva ou directa, que não deduz ou conclui a verdade mas descobre-a por revelação ou visão imediata. Antes de avançar mais temos de considerar resumidamente as objecções destes dissidentes.
Comecemos pelo cepticismo que põe em dúvida todos e cada um dos conhecimentos humanos, e mais ainda, que duvida até da capacidade humana de vir a ter algum conhecimento digno desse nome. Porque é que a razão não pode dar conta nem compreender como é a realidade? Suponhamos que estamos a ouvir uma sinfonia de Beethoven e que, com papel e lápis, tentamos desenhar a harmonia que ouvimos. Pintaremos diversos traços, talvez semelhantes a picos quando a música é mais intensa e linhas para baixo quando se suaviza, círculos quando nos envolve de modo agradável e dentes de serra quando nos desassossega, florinhas para indicar que soa liricamente e botas militares quando se ouvem os trompetes, etc. Depois, muito satisfeitos, consideraremos que nesse papel está a "verdade" da sinfonia. Mas, haverá alguém capaz de se aperceber de facto daquilo que é a sinfonia sem mais ajuda que estas garatujas? Pois do mesmo modo talvez a razão humana fracasse ao tentar reproduzir e captar a realidade, de cujo registo está tão afastada como o desenho da música... Para o céptico, todo o suposto conhecimento humano é no mínimo duvidoso e no fim das contas pouco ou nada descobre do que pretendíamos saber. Quando o examinamos a finado não existe conhecimento verdadeiramente certo nem sequer fiável.
A primeira resposta ao cepticismo é óbvia: será que o céptico tem como certa e fiável pelo menos a sua crença no cepticismo? Quem diz "só sei que nada sei não aceitará pelo menos que conhece uma verdade, a do seu não saber? Se nada é verdade, não é verdade pelo menos que nada é verdade? Numa palavra, ao cepticismo é censurado ser contraditório consigo próprio: se é verdade que não conhecemos a verdade, pelo menos já conhecemos uma verdade, logo não é verdade que não conheçamos a verdade. (A esta objecção o céptico poderia responder que não duvida da verdade mas duvida que possamos distingui-la sempre fiavelmente do falso...) Outra contradição: o céptico pode dar bons argumentos contra a possibilidade de conhecimento racional mas para isso precisa de utilizar a razão argumentativa: tem que raciocinar para nos convencermos (e convencer-se a si próprio!) de que raciocinar não serve para nada. Pelos vistos, nem sequer se pode rejeitar a razão sem a utilizar. Terceira dúvida face à dúvida: podemos sustentar que cada uma das nossas crenças concretas é falível (ontem acreditávamos que a Terra era plana, hoje que é redonda e amanhã... quem sabe!) mas se nos enganamos deve entender-se que poderíamos acertar, porque se não há possibilidade de acerto – quer dizer, de conhecimento verdadeiro, mesmo que ainda não se tenha dado –, também não há possibilidade de erro. O pior do cepticismo não é impedir-nos de afirmar algo de verdadeiro mas impedir-nos até de dizer algo de falso. Quarta refutação, mais grosseira: quem não acredita na verdade de nenhum das nossas crenças não deveria ter muita dificuldade em sentar-se na linha do comboio à espera do próximo expresso ou saltar de um sétimo andar, pois pode ser que o medo inspirado por essas condutas se baseie em simples mal-entendidos. Bem sei que estou a utilizar um golpe baixo. De qualquer forma, o cepticismo chama a atenção para uma questão muito inquietante: como podemos conhecer algo acerca da realidade, quer seja pouco ou muito? Como é que nós os humanos, podemos atingir o que a realidade éde facto, com os nossos grosseiros meios sensoriais e intelectuais?... É chocante que um simples mamífero possa possuir alguma chave para interpretar o universo! O físico Albert Einstein, talvez o maior cientista do século xx, disse uma vez: "O que é mais incompreensível na natureza é que nós possamos pelo menos em parte compreendê-la." E Einstein não duvidava de que a compreendemos pelo menos em parte. A que se deve este milagre? Será que é porque existe em nós uma chispa divina, porque temos algo de deuses, mesmo que seja da série Z? Mas talvez não seja o nosso parentesco com os deuses o que nos permita conhecer, mas a nossa pertença àquilo que desejamos conhecer: somos capazes – pelo menos parcialmente – de compreender a realidade porque fazemos parte dela e estamos feitos de acordo com princípios semelhantes. Os nossos sentidos e a nossa mente são reais e por isso conseguem melhor ou pior reflectir o resto da realidade."
Fernando Savater, As Perguntas da Vida, pp. 52 a 58

1. O texto refere a existência de três tipos de cepticismo. Identifique-os e saliente a diferenças expostas por Fernando Savater.
2. Exponha as refutações, que segundo o texto, se podem fazer ao cepticismo filosófico.
3. "O cepticismo não deve ser encarado sob o prisma de uma total negatividade. Em muitas situações ele representa um avanço na nossa capacidade para conhecer o mundo" Concorda com esta afirmação? Justifique a sua resposta.
(Retirado do site Netprof)

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